
Desde os primeiros relatos, mês passado, de danos nos reatores da usina nuclear de Fukushima Daiichi, a questão recorrente é se o vazamento de elementos radioativos irá prejudicar pessoas no Japão ou em outras partes do mundo. Para muitos, o maior medo é o câncer. Sabe-se que determinados níveis de exposição à radiação aumentam o risco de câncer, mas os cientistas discordam sobre os efeitos de doses muito baixas, como as que podem ter ocorrido até agora no Japão.
Para alguns pesquisadores, é razoável usar dados de doses altas para calcular o risco das menores. Eles argumentam que qualquer exposição à radiação eleva o risco de câncer, embora provavelmente numa quantidade pequena, no caso de doses minúsculas. Já outros dizem que estimar o risco para doses próximas de zero não faz sentido, e alguns acreditam haver um limite abaixo do qual não há riscos.
O Dr. John Boice, por exemplo, professor de medicina da Universidade Vanderbilt que estuda os efeitos da radiação em seres humanos, avisa que calcular o risco de doses minúsculas é perigoso em si. Ele argumenta que existem poucos dados sobre doses abaixo de 10 rem, mas que algumas estimativas de risco chegam a um décimo de rem, ou menos. Boice também é diretor científico do Instituto Epidemiológico Internacional, de Rockville, Maryland, instituição privada que estuda a radiação com subsídios do governo e da indústria.
“Posso pegar uma dose baixa, multiplicá-la por um milhão de pessoas e estimar um risco”, ele disse, salientando que grupos profissionais como a Health Physics Society desencorajam o cálculo. “Falamos para não fazer isso. Não se deve multiplicar uma dose minúscula por milhões e dizer que haverá milhares de mortes. É inadequado, enganoso e alarmista. Você passou de ordens de magnitude inferior em que não existem provas de efeito algum”.
Mas o Dr. David Brenner, diretor do Centro Radiológico da Universidade Columbia, está entre os que duvidam da existência de um limite. A radiação danifica o DNA, diz ele, e uma única célula afetada pode se transformar na semente de um câncer, embora leve décadas para se desenvolver. Brenner estuda a possibilidade de que, em termos de provocar a doença, doses baixas de radiação possam ser mais perigosas do que os cálculos baseados com doses altas preveem.
As estimativas atuais das agências do governo para riscos de doses baixas valem-se da extrapolação de doses mais altas. Nos Estados Unidos, a maioria das agências governamentais usa uma unidade chamada “rem” para medir doses radiativas; na Europa e Ásia é empregado o milisievert, que equivale a 0,1 rem. Segundo a Agência de Proteção Ambiental, as pessoas recebem 0,3 rem por ano de radiação natural.
Se dez mil pessoas forem expostas a 1,0 rem, em doses pequenas durante a vida inteira (acima da exposição natural), segundo a agência, a radiação causará cinco ou seis mortes a mais por câncer. Num grupo desse tamanho, cerca de duas mil normalmente morreriam de cânceres não causados pela radiação. Então, a dose extra elevaria o total para 2.005 ou 2.006.
Até agora, somente quantidades diminutas de radiatividade dos reatores japoneses foram detectadas nos Estados Unidos, no leite, nas Costas Leste e Oeste, e na chuva, em Massachusetts. Funcionários federais dizem que os instrumentos podem detectar níveis quase inexistentes – muito abaixo do nível natural de radiação – que não são uma ameaça.
Em regiões do Japão, a radioatividade foi detectada em diversos momentos no leite, carne, hortaliças e água encanada, além de no chão e no mar que cercam a usina nuclear. Os níveis na água encanada de certas regiões chegaram a ser altos o suficiente para as autoridades aconselharem as pessoas a beber água mineral.
O governo japonês suspendeu o embarque de leite e produtos de algumas províncias. Foi encontrado iodo radioativo no leite dessas regiões, produto que se acumula na tireoide e pode causar câncer, principalmente nas crianças. Os níveis no leite ultrapassaram o limite considerado preocupante nos Estados Unidos.
A 400 metros da usina de Fukushima – o governo removeu os moradores num raio de 20 km de lá –, foram encontrados níveis de radiação de 0,1 rem por hora, e os pesquisadores concordam que quatro dias dessa exposição elevariam o risco de câncer numa pessoa. No entanto, outros afirmam que mesmo uma exposição mais breve aumentaria o risco.
Muitas das estimativas de risco de hoje em dia são baseadas num estudo com 200 mil pessoas que sobreviveram ao bombardeio atômico em Hiroshima e Nagasaki, em agosto de 1945. Mais de 40% delas continuam vivas. A pesquisa acontece há 63 anos e um artigo revisando os achados foi publicado em março no periódico “Disaster Medicine and Public Health Preparedness”.
Por ora, é incerta a relevância dos resultados de sobreviventes da bomba para as pessoas do Japão que podem ter sido expostas à radiação dos reatores.
“Uma preocupação é tentar descobrir que dose essas pessoas receberam” dos reatores de Fukushima, disse o Dr. Evan B. Douple, o primeiro autor do artigo sobre os sobreviventes da bomba e subchefe de pesquisa da Fundação de Pesquisa dos Efeitos da Radiação em Hiroshima, que estuda os sobreviventes e é custeado pelos governos do Japão e dos Estados Unidos. O órgão sucedeu a Comissão de Vítimas da Bomba Atômica, criada em 1947.
Douple ressaltou que o método de exposição foi diferente. Os sobreviventes da bomba receberam a dose inteira de uma só vez no corpo inteiro. Já a exposição aos reatores pode ser gradual. “Aqui, os radioisótopos estão vagando na água e no ar sem necessariamente produzir uma exposição externa no corpo inteiro e afetam o organismo em doses muito pequenas. Por enquanto a informação que recebemos é de que as doses não são intermediárias, nem altas, mas muito baixas”.
Os sobreviventes da bomba receberam doses radioativas que variaram de desprezível a alta; a alta seria 200 rem ou mais, o que Douple qualificou de “dose quase letal”. Mas estima-se que 61 mil pessoas receberam meio rem ou menos, e que 28 mil receberam de meio a dez rem.
As doses foram calculadas segundo fatores como proximidade do centro da explosão e se a pessoa estava dentro de construções. Para efeitos comparativos, o estudo também inclui 26 mil pessoas que moravam nas mesmas cidades, mas não foram expostas à radiação por não estarem presentes durante os bombardeios.
Os pesquisadores monitoraram os dois grupos – expostos e não expostos – para determinar se a radiação causava doenças. A radiação aumentou o risco de câncer. “Só que o risco de câncer é bastante baixo, mais baixo do que o público poderia esperar”, disse Douple. Segundo ele, os próprios pesquisadores esperavam encontrar mais casos do que de fato acharam.
Entre os sobreviventes, a leucemia foi o primeiro câncer a surgir. Os casos aumentaram num período de cinco anos após o bombardeio, e passaram a declinar depois de dez anos. Dos 120 mil sobreviventes de um grupo de estudo, 219 expostos à radiação morreram de leucemia, entre 1950 e 2002, último ano em que os dados foram publicados. Contudo, somente 98 desses casos, ou 45%, foram mortes adicionais atribuídas à radiação.
Entretanto, quando as mortes por leucemia foram classificadas por ordem de radiação, ficou claro que o riscou aumentara com a dose. Entre as pessoas que receberam as mais altas (acima de 100 rem), 86% das mortes por leucemia foram resultado da radiação, em comparação com somente 36% de óbitos pela mesma doença naquelas com exposição entre 10 rem e 50 rem. Já entre quem recebeu de meio rem a 10 rem, somente quatro das 77 mortes por leucemia, 5%, foram consideradas mortes adicionais atribuídas à radiação.
De acordo com Douple, tumores sólidos, que afetam o cólon, mamas, fígado, pulmão e outros órgãos, demoram mais tempo do que a leucemia para se desenvolver. Em um grupo de estudo de cem mil pessoas, houve 7.851 mortes por cânceres sólidos entre os indivíduos expostos à radiação, mas somente 850, ou 11%, foram considerados óbitos excedentes causados pela radiação. Assim como na leucemia, o risco aumentava com a dose de radiação.
Alguns órgãos eram mais sensíveis do que outros. Por exemplo, a radiação aumentava o risco de câncer na mama, mas não na próstata.
Douple enfatizou que, em doses diminutas, o risco também era diminuto. Ele também disse que não havia indicação de limite, ou nível abaixo do qual a exposição aguda à radiação não tivesse efeito, ou teria um efeito menor do que seria previsto baseado em exposições mais elevadas.
Os dados da bomba podem ser aplicados a Fukushima? Hiroshima e Nagasaki foram os piores casos, segundo Douple. É possível extrapolar deles para as doses minúsculas detectadas por enquanto, mas quando fazemos isso, garante, existem “incertezas grandes”. Ele ainda acrescentou que os cientistas japoneses do instituto foram chamados a Tóquio, para ajudar a identificar quais podem ser os efeitos potenciais à saúde, como detectá-los e estudá-los.