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Como trabalham os voluntários que atendem quem precisa desabafar
 
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25/11/2014

Como trabalham os voluntários que atendem quem precisa desabafar

Demanda pelo atendimento de entidades como como CVV e Amor Exigente vem aumentando e se intensifica nos finais de ano

O telefone chama três vezes. Não importa a hora, alguém vai atender e dizer alô. E histórias como essas à esquerda vão se revelar do outro lado da linha. No Centro de Valorização da Vida (CVV), quem responde à ligação não recebe um centavo pelo serviço. São voluntários que, em nome do bem-estar de desconhecidos, se dispõem a aguçar um sentido básico, mas esquecido na correria do dia a dia: ouvir.

O CVV é uma janela de luz permanentemente acesa em um prédio da Rua José de Alencar, no Menino Deus, em Porto Alegre. O espaço, cedido pelo Estado mas mantido há 44 anos pelos próprios voluntários, é amplo (são 100 metros quadrados): tem hall de entrada, banheiros, cozinha, salão de convivência, pátio. Mas está em uma salinha pequena, sem televisão, computador ou qualquer tipo de distração, o ambiente principal da entidade filantrópica. É ali que, a portas fechadas e sem qualquer possibilidade de interferência externa, são prestados os atendimentos – em torno de 40 por dia.

Os voluntários viram o número de ligações dobrar nos últimos dois anos. Em 2012, eram 600 atendimentos mensais; hoje, 1,2 mil. O número deve aumentar ainda mais neste fim de ano – Natal e Réveillon se fazem acompanhar por telefonemas melancólicos, de quem está longe da família ou dos amigos nas noites de festa. Devido à alta demanda, o CVV busca pessoas dispostas a ajudar – interessados devem se inscrever em um curso de capacitação que começou neste sábado (leia no quadro ao lado).

O psicanalista Eduardo Mendes Ribeiro, membro da Associação Psicanalítica de Porto Alegre (Appoa), comenta o boom de ligações:

- Estamos vivendo uma mudança nas configurações familiares. Há cada vez mais gente morando sozinha e apostando nas relações virtuais. São relações que nos põem em contato com muita gente, mas têm pouca estabilidade.

Há quem ligue para o 141 (o custo é de uma ligação local) apenas para contar como tem passado. Outros desabafam suas angústias, relatam problemas de saúde, choram um amor perdido. Tem ainda quem confidencie as mais tórridas taras sexuais ou até mesmo confesse um crime. Nenhum é considerado indigno de atenção. São todos "outras pessoas", expressão recorrente do dicionário do CVV.

- Precisamos aceitar a pessoa da maneira como ela se apresenta naquele momento, oferecendo respostas compreensivas e demonstrando que estamos ali, de ouvidos abertos e interessados no que ela tem a dizer - diz Nilsa (os voluntários preferem não revelar o sobrenome), responsável por ministrar o curso.

Em uma ocasião, ao atender o telefone, Nilsa ouviu de primeira:

- Vou te dizer algo que nunca falei ao meu psiquiatra.

A confiança é atribuída ao anonimato. Os telefones do CVV não têm bina, e os voluntários jamais perguntam o nome de quem está ligando – isso só é revelado por vontade própria.

- Tem gente que liga há mais de 30 anos – afirma Nilsa, voluntária há nove.

Os voluntários do CVV tentam diminuir uma estatística preocupante: no Brasil, ocorrem, em média, 32 suicídios por dia, sendo de três a quatro no Rio Grande do Sul – foram 1.136 mortes no Estado em 2013, segundo a Secretaria de Saúde. Já as tentativas superam esses números em até 20 vezes, segundo o psiquiatra Ricardo Nogueira, coordenador do Centro de Promoção à Vida e Prevenção ao Suicídio do Sistema de Saúde Mãe de Deus.

- Devido a essa incidência, o suicídio deixa de ser um problema de saúde individual e passa a ser uma questão de saúde coletiva. Falar sobre o suicídio é fundamental sempre, não só quando acontece com algum artista - critica.

Nos telefonemas mais escabrosos, o maior desafio dos voluntários é se policiar para não dar opinião. Em hipótese alguma o atendente deve se posicionar sobre a dúvida da "outra pessoa", tampouco dar conselhos ou contar a própria história.

- É o nosso principal exercício. Quando uma mulher relata que é agredida pelo marido, não podemos dizer para ela se separar, por exemplo - afirma a voluntária Adriana.

Em casos como esse, o manual do CVV não permite nem a indicação da Delegacia da Mulher como referência às mulheres vítimas de violência doméstica.

- A não ser que a pessoa peça –- afirma.

Há um ano e meio, Marília, outra integrante do time, dedica quatro horas e meia do seu tempo semanal para atender telefonemas atormentados. "O que tu me dizes?", "O que eu faço?", perguntam a ela.

- A gente tem que dar uma volta, devolver os questionamentos. O CVV funciona como um eco: serve para a pessoa se ouvir - resume ela, que aos 66 anos, aposentada, sente-se gratificada por ajudar a "aliviar a desgraça humana".

Não é um ofício fácil, concordam os voluntários. Tão solitário quando quem está ligando é o trabalho de quem atende.

- É preciso muito equilíbrio emocional para não se deixar abater pelos problemas dos outros - pondera Nilsa.

Isso significa deixar de lado os dramas pessoais e não se envolver com as histórias contadas ao telefone. Não raro, uma voluntária é "paciente" da outra. Em um dia difícil, na hora de trocar o turno, o telefone fica alguns minutos fora do gancho, para que quem está saindo possa desabafar com quem está entrando – e ir para casa sem carregar a carga alheia.

Para reforçar a acolhida, existe técnica até para o tom de voz.

- Se não vier do coração, a "outra pessoa" sente - afirma Liziane, mais uma voluntária.

Foi assim que ela conseguiu evitar que uma pessoa concretizasse o anunciado desejo de se atirar do alto de um edifício.

- Um mês depois, essa pessoa ligou de novo para agradecer por estar vivo (como os voluntários têm agenda fixa na semana, as "outras pessoas" costumam ligar em horários específicos para serem atendidos pela mesma atendente).

De acordo com a psicóloga Rossana Andriola, especialista em psicologia cognitiva e comportamental, o serviço é fundamental para conter o componente mais relevante do suicídio: a impulsividade.

- Quando um pensamento é exteriorizado na fala, as coisas saem da fantasia e se tornam concretas, fazendo com que essas pessoas realmente reflitam sobre as consequências do suicídio. Por isso, ter a quem recorrer num momento de desespero é importante. Elas vão ser ouvidas até que a vontade passe - afirma Rossana.

Mas se há quem sinalize a intenção de tirar a própria vida, tem gente que só quer ajuda para dormir. Os três anos de voluntariado no plantão noturno deram à nutricionista Nádia, 55 anos, experiência para aliviar o sono dos aflitos. Já ouviu meia hora só de choro, depois mais uma hora de fala incessante para que, ao fim da ligação, a "outra pessoa" dissesse que finalmente se sentia tranquila e poderia adormecer.

- Dá vontade de dar um abraço, pegar no colo - diz Nádia, que credita à sua própria calma a capacidade de serenar os outros.

Ouvir estranhos ajudou, inclusive, na relação com a filha. Desde que se tornou voluntária, a mãe empresta seus ouvidos à jovem com mais frequência.

- A gente desenvolve um faro, sabe? Só de alguém passar por mim, só pela respiração, eu já sei dizer se aquela pessoa está bem ou não.

Apoio às famílias de dependentes químicos

Se no CVV o atendente fala o mínimo possível, deixando campo aberto ao desabafo unilateral, em outra entidade de assistência social a troca de experiências é o ponto-chave. O programa Amor Exigente (AE), presente em mais de 70 municípios do Estado, também é feito por voluntários – a maioria deles já passou pelo problema de quem procura ajuda: a convivência com o dependente químico.

Os encontros no Amor Exigente ocorrem nos moldes dos Alcoólicos Anônimos. São semanais, com duração de duas horas. Não é necessário inscrição: basta chegar. As reuniões sempre trazem uma palestra sobre o princípio do mês (em novembro, aborda-se a organização e a disciplina; mês que vem, a lição de que amar alguém não significa dar-lhe tudo o que é possível). Depois, os participantes são divididos em subgrupos para partilhar os acontecimentos dos últimos dias. Uma oração de serenidade encerra a atividade, que atende cerca de 165 pessoas por semana.

Fundado nos Estados Unidos, o Amor Exigente foi trazido ao Brasil pelo padre Haroldo Joseph Rahm, há 30 anos. O que não significa ligação com qualquer doutrina religiosa.

- São momentos comuns de espiritualidade pluralista - define a coordenadora de um grupo de Gravataí, Dulce dos Reis, que está recrutando candidatos para um curso de capacitação de voluntários, com data marcada para 12, 13 e 14 de dezembro.

Assim como Dulce, muitos voluntários chegaram ao grupo em função da dor. Dois anos atrás, a nutricionista Margarete havia descoberto que seu filho adolescente era viciado em drogas- cocaína, principalmente. O Amor Exigente lhe deu o ânimo que nem seu psiquiatra havia conseguido:

- Ouvir pessoas que passaram pela mesma coisa e hoje estão aí, na luta por um mundo livre de drogas, foi o que mais me ajudou a levantar.

Sua história é semelhante a de Carolina, advogada, voluntária do AE. Ao saber que o filho de 15 anos estava envolvido com drogas (não sabe dizer quantas nem quais), ela imediatamente decidiu que não permitiria que o medo se instalasse de novo – já havia sido muito duro perder um irmão assassinado em função do tráfico. Foi conversando com outras mães, dentro do grupo, que ela percebeu que precisava mudar seu comportamento:

- Estamos tão imersos nas atividades do dia a dia que não paramos para escutar nossos filhos. Hoje, se meu filho falar comigo, posso nem ter uma resposta na hora, mas pelo menos vou ouvir e refletir sobre o assunto, seja qual for.

Como ajudar

O Curso do CVV

-Pode participar do curso de formação quem tem mais de 18 anos, com disponibilidade para plantões semanais de quatro horas e meia – ou de oito horas a cada duas semanas –, mais duas reuniões mensais para aperfeiçoamento e confraternização.

-O curso começou neste sábado, mas ainda há vagas. As aulas ocorrem na sede do CVV , aos sábados, das 9h às 16h30min, com intervalo para almoço.

-Inscrições: fone 141 ou e-mail portoalegre@cvv.org.br.

O curso do Amor Exigente

-O curso de capacitação de voluntários do Amor Exigente de Gravataí está com inscrições abertas.

-Ocorre de 12 a 14 de dezembro. Por meio de palestras, os candidatos vão aprender como atuar nas situações de prevenção e a propagar bem-estar a familiares de dependentes químicos.

-O valor de R$ 160 inclui duas pernoites, cafés da manhã, almoços, lanches e jantares.

-Informações: anna.braun@ig.com.br.


Autor: Luísa Martins
Fonte: Zero Hora
Autor da Foto: Adriana Franciosi

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