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Qualidade das políticas públicas para a área de saúde mental volta a ser alvo de debates
 
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25/01/2016

Qualidade das políticas públicas para a área de saúde mental volta a ser alvo de debates

Novos responsáveis por saúde mental na União e no governo do Estado provocam protestos e discussões sobre o atual sistema de tratamento

Doutora Sol veste o jaleco branco e começa a correr. Com ajuda de outros colegas, ergue uma das pontas da camisa de força de 30 metros estendida sobre a grama, diante do Auditório Araújo Vianna, em Porto Alegre. Cercam uma morena de cabelos compridos, que tenta fugir. Primeiro prendem seus tornozelos, depois a cintura, os braços. Em minutos a mulher está imóvel, braços e pernas amarrados.

A cena desperta a atenção de quem passa, no fim da tarde abafado da última quinta-feira. Não sabem o quanto de realidade e de desvario têm diante de seus olhos.

– Ela tá se fazendo – palpita um jovem ao observar a mulher se contorcendo.

– Não tá, não – rebate a companheira.

– Tá louca ou tá presa? – pergunta um ambulante.

– Olha o porrete! – diz outro.

Completada a imobilização, os “doutores” carregam a enfaixada nos ombros para dentro do auditório. Os papéis invertidos embaralham os padrões de sanidade do público. Doutora Sol se chama na verdade Solange Gonçalves Luciano, 47 anos, usa cabelos trançados com tererê e é usuária da rede de saúde mental. A “paciente” enfaixada é a bailarina Maria Albers, que participa com Solange do grupo de teatro Nau da Liberdade. Com a camisa de força e os aventais brancos, estão ali para protestar. Diante do público que lota o auditório para participar de debates do Fórum Social Temático, o grupo sobe ao palco para reivindicar a saída do novo coordenador da Saúde Mental do país, Valencius Wurch Duarte Filho. O psiquiatra é alvo de manifestações em todo o país e está há um mês com a sala ocupada em Brasília por integrantes do movimento antimanicomial, inconformados com sua nomeação. Valencius dirigiu de 1993 a 1998 a Casa de Saúde Dr. Eiras de Paracambi, na região metropolitana do Rio de Janeiro, na época o maior manicômio privado da América Latina, com 1,5 mil pacientes. O lugar ficou conhecido por práticas como a aplicação de eletrochoque sem anestesia nos internos e foi chamado de “casa dos horrores” pelo então ministro da saúde José Serra, depois que auditoria realizada no ano de 2000 revelou condições sub-humanas de tratamento. Durante as discussões que antecederam a aprovação da reforma psiquiátrica no país, que passou a valer no final do governo Fernando Henrique Cardoso, em 2001, Valencius também havia provocado reações ao conceder uma entrevista se posicionando contra o projeto, que tinha como um dos eixos a substituição do tratamento confinado em manicômios por cuidados mais humanizados em uma rede de atendimento psicossocial, reivindicação pleiteada desde a década de 1970 por militantes e trabalhadores da área da saúde mental.

– A indicação de Valencius afronta a história desse movimento, é indigna... e um ultraje a todos os que antecederam o cargo, profissionais e pesquisadores – lê ao microfone um dos integrantes do grupo.

– Fora Valencius! – repetiram em coro ao final.

O maior temor de entidades como o Movimento Nacional Antimanicomial e o Conselho Federal de Psicologia é que a nomeação possa representar retrocessos na política de saúde mental. Mas o ponto de vista divide profissionais da área. A Associação Brasileira de Psiquiatria, por exemplo, defende que mudanças são necessárias porque ao longo das últimas décadas sua condução teria sido “puramente ideológica”, advogando pelo direito de que os pacientes mantivessem “sintomas delirantes”.

– Não tenho elementos para julgar a gestão que se inicia. O doutor Valencius não é nem associado à ABP, não posso falar nada dele. Mas a política adotada há 30 anos no Brasil não existe em lugar nenhum do mundo, já está provado que não funciona. A saída do coordenador anterior (Roberto Kinoshita, identificado com o movimento antimanicomial) foi positiva. Não estava sendo feito nada. Não aguentamos mais ser perseguidos por querer fazer ciência – critica o presidente da ABP, Antônio Geraldo da Silva.

Um dos pontos de maior consenso é que o cenário atual continua distante daquele idealizado pela reforma. A lei prevê a substituição de vagas em hospitais psiquiátricos por leitos em hospitais gerais e o atendimento em Centros de Atenção Psicossocial (CAPS). O problema é que os leitos foram fechados em velocidade mais rápida do que a nova rede foi criada. Pelos cálculos da ABP, os 2,2 mil Caps existentes no país atendem hoje a apenas 5% da demanda grave.

– Temos 50 milhões de doentes mentais no país, teríamos de ter 100 mil Caps. Temos menos de 25 mil leitos, teríamos de ter 90 mil. Fecharam 100 mil leitos psiquiátricos no Brasil. A verba para a saúde mental há 25 anos era 6,3% do orçamento, hoje é menos de 1,8%. Para onde levaram esse dinheiro? – questiona Antônio Geraldo.

Se os impasses são conhecidos, as soluções vislumbradas são divergentes. Enquanto entidades psiquiátricas questionam parâmetros do modelo, considerando-o ineficaz, integrantes do movimento antimanicomial defendem o aprofundamento da reforma e valorizam conquistas como a humanização do tratamento.

– É meio como se fosse jogar a criança junto com a água da bacia: existem problemas em alguns lugares, ok, nenhum de nós vai negar, mas isso não quer dizer que o modelo está equivocado: o modelo em sua totalidade não está totalmente implantado. É um problema de execução, não da proposta – avalia a psicanalista Cristina Ventura, integrante do núcleo de pesquisa em políticas públicas de saúde mental do instituto de psiquiatria da UFRJ, que trabalha com o tema há 30 anos.

Oficialmente, o próprio Valencius nega a intenção de alterar os parâmetros da reforma. Em uma audiência pública na Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro, em 18 de dezembro, ele afirmou que a lei “trouxe indiscutivelmente a melhora e a humanização aos portadores de transtornos mentais”. Reconheceu ainda que “de um modelo centrado nas internações hospitalares, evoluímos para uma atenção humanizada e balizada nos princípios da carta da pessoa humana das Nações Unidas. A lei é baseada na carta de direitos humanos. Ninguém pode ser contra isso, absolutamente
ninguém.”

Mas o discurso foi insuficiente para convencer seus críticos.

– Hoje o Valencius diz que mudou, que é a favor da reforma. Acho ótimo que ele tenha mudado, as pessoas têm o direito a retificar suas trajetórias, mas isso não significa que, porque mudou de opinião, ele consiga ter legitimidade em um campo que é muito maior. O temor principal é uma paralisia no financiamento e na implantação de serviços, na máquina que aciona o avanço da reforma – ressalta Cristina.

Para a psicanalista Lucíola Freitas de Macedo, editora da revista Correio da Escola Brasileira de Psicanálise e diretora de ensino do Instituto de Psicologia e Saúde Mental de Minas Gerais, o conflito atual precisa ser compreendido como um reflexo da crise política, que abriria brechas para retrocessos na medida em que se perdem parâmetros e a própria esperança de melhorias. Por outro lado, o embate de visões permite uma reflexão sobre a forma como nossa sociedade lida com sua loucura: ao mesmo tempo em que aposta na medicalização e nas “armas químicas” para silenciar desvios mentais, tolera outros desvarios.

– O curioso é que existe uma loucura institucionalizada e permitida. O desvio de recursos públicos que vai para o escoadouro no Brasil é uma loucura, mas isso não é considerado. O que mais me preocupa é que a loucura das pessoas mais desprovidas é desamparada e silenciada, encarcerada, desassistida. Se o dinheiro público não tivesse sido desviado, talvez conseguíssemos aparelhar melhor a rede. Se as famílias não têm o apoio necessário, precisam se criar programas e grupos de apoio, e não voltar ao estágio anterior e segregar. A rede só não funciona melhor porque não recebe os investimentos necessários – analisa Lucíola, autora do livro Primo Levi: a Escrita do Trauma (Subversos, 2014).

Mário Corso: orgulho louco

Enquanto engrossam o coro contra Valencius, no Rio Grande do Sul entidades também protestam contra as diretrizes adotadas em saúde mental pelo governo do Estado. Em novembro, foi decretada em ato sumário a extinção do grupo de teatro Nau da Liberdade, responsável pela performance com a camisa de força no Fórum Social Mundial Temático. O argumento foi de que a manutenção do grupo era “muito cara” e “pouco terapêutica”. Segundo a coordenadora Maria de Fátima Fischer, o custo para mantê-lo era a luz da sala e o pagamento de duas profissionais. A extinção foi anunciada pouco após a participação do Nau da Liberdade na polêmica da Parada do Orgulho Louco, criticada por entidades médicas do Estado. Agora, em sinal de resistência, o grupo que reúne ao todo 27 usuários da rede de saúde mental faz ensaios ao ar livre, no parque da Redenção.

– Tanto o Orgulho Louco quanto a Nau da Liberdade são eventos que representam o ideário da reforma psiquiátrica. Mas enquanto avançam serviços e autonomia, há uma reação. E existe uma correlação de forças: de um lado os movimentos, de outro a psiquiatria, com sua visão unidisciplinar centrada no médico – argumenta Fátima.

Engajados no movimento antimanicomial, participantes do grupo, como Solange, que já passou por longos períodos internadas e atualmente mora sozinha na Lomba do Pinheiro, prometem seguir mobilizados: nos palcos e fora dele.

– Antes a gente não tinha voz. Os outros falavam pela gente. Mas agora aprendemos que temos direitos – explica Solange.

Desde que entrou para o grupo de teatro, Solange diz ter aprendido também a “tomar banho todo dia” para estar “cheirosinha” nas apresentações.

– Parece uma coisa pequena, mas é importante. Nunca me senti encaixada nesse planeta. Antes tanto fazia, queria me matar, me cortava, tomava veneno de rato. Eu gosto do teatro porque é como se fosse viver duas vezes, não vejo a hora de ter uma apresentação. Antes, quase não conversava com ninguém. A doença mental faz a gente se sentir excluído. Agora quando penso em morrer penso que tem gente se inspirando em mim, isso me faz ter vontade de continuar. E aí continuo – sorri, orgulhosa.

Na contramão da clausura

– A luta por reformas na saúde mental começa no final dos anos 1970 no Brasil, no contexto da redemocratização do país. Tem como inspiração a reforma italiana capitaneada por Franco Basaglia (1924 – 1980) a partir dos anos 1960.

– Em 1987, surge o Movimento da Luta Antimanicomial, a partir de encontro nacional de trabalhadores da saúde mental, em Bauru, com o lema: “por uma sociedade sem manicômios”. Denunciava-se abusos e violação de direitos humanos sofridos pelos usuários da rede de saúde mental dentro das instituições.

– Em 1989, o então deputado Paulo Delgado apresenta projeto de lei prevendo a substituição dos manicômios por uma rede de serviços e estratégias territoriais e comunitárias aos pacientes.

– Em 1990, o Brasil torna-se signatário da Declaração de Caracas, a qual propõe a reestruturação da assistência psiquiátrica.

– Em 1992, o Rio Grande do Sul aprova sua reforma psiquiátrica, a primeira do país.

– Em 2001, é aprovada a Lei Federal 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas portadoras de transtornos mentais e redireciona o modelo assistencial em saúde mental. Dessa lei origina-se a Política de Saúde Mental, que tem como princípio garantir cuidado ao paciente com transtorno mental em serviços substitutivos aos hospitais psiquiátricos. A ideia é reintegrar o paciente à sociedade em vez de confiná-lo em instituições segregadas. 


Autor: Letícia Duarte
Fonte: Zero Hora

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