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Organizações lutam contra projeto de lei que torna crime hediondo a transmissão intencional do HIV
 
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25/05/2017

Organizações lutam contra projeto de lei que torna crime hediondo a transmissão intencional do HIV

Medida aumentaria o estigma em torno das pessoas doentes e afastaria a população da procura por diagnóstico

Um projeto de lei elaborado em 2015 e que tramita no Congresso Nacional quer aumentar o rigor penal em casos de transmissão intencional do vírus da aids — a ideia é tornar o ato crime hediondo, em que o condenado não pode receber anistia ou indulto nem ser solto mediante fiança. Organizações que apoiam pessoas com HIV e observatórios de políticas públicas da doença fazem campanha para que o PL 198/2015, de autoria do deputado Pompeo de Mattos (PDT-RS), seja retirado. Entidades como a UNAIDS, o braço da Organização das Nações Unidas (ONU) que trata das questões relacionadas à doença, afirmam que a medida aumentaria o estigma em torno das pessoas com HIV e afastaria a população da procura por diagnóstico.

O Brasil registrou há 37 anos o primeiro caso da doença. Desde então, o país se tornou exemplo mundial no tratamento do vírus HIV e distribui medicamentos gratuitos para os soropositivos. A epidemia é considerada estabilizada e, nos últimos 20 anos, houve uma queda de 42,3% na mortalidade. Em 2016, o número de pessoas com HIV/aids no Brasil era 827 mil e dessas, aproximadamente, 112 mil não sabiam que tinham a doença, estima o Ministério da Saúde. A cada ano, mais de 40 mil novos casos surgem no país.

No Brasil, a transmissão intencional, ou seja, com dolo, já é considerada crime. Os artigos 130 e 131 do Código Penal já preveem pena com prisão para quem infecta outros. Quem expõe alguém a uma doença venérea por meio de relação sexual pode ser preso por três meses a um ano ou receber multa. Se a pessoa quer intencionalmente transmitir a doença, a pena é de reclusão, de um a quatro anos, e multa.

Segundo o advogado criminalista Nereu Lima, para que ocorra a condenação, é preciso haver provas concretas que a pessoa queria transmitir a doença para uma pessoa, como uma gravação de alguém dizendo que sabe que está infectado e deseja infectar o outro.

— Precisa que tenha um elemento seguro que a pessoa desejava aquele crime intencionalmente para transmitir uma doença gravíssima. É difícil provar essa intenção— afirma.

O deputado Pompeo quer classificar essa prática como crime hediondo — como o latrocínio e o estupro —, tirando do condenado as possibilidades de anistia, indulto ou soltura sob fiança. Ele afirma que a intenção era fazer uma lei para punir especificamente quem tivesse a intenção de transmitir HIV, mas viu que o projeto recebeu resistência dos movimentos sociais.

— O apelo dos movimentos que atuam nesse campo é que isso pode criminalizar a questão geral da aids. Estou chamando uma audiência pública, vamos ter um debate e entrar em comum acordo. Quero que seja bom para a sociedade — afirma Pompeo.

O deputado diz que já convocou uma audiência pública para tratar do assunto. A ZH, ele contou já ter vistos casos intencionais de transmissão de HIV em reportagens veiculadas pela imprensa. Na Comissão de Seguridade Social e Família da Câmara, a relatora do projeto, a deputada Laura Carneiro (PMDB-RJ), rejeitou o projeto no seu parecer. Salvador Correa, coordenador da área de treinamento e capacitação da Associação Brasileira Interdisciplinar de Aids (Abiaids), espera que a mobilização das organizações resulte na queda do projeto:

— Estamos solicitando que os deputados arquivem esse projeto. O Ministério da Saúde tem a política de tratar e testar as pessoas e iniciar um tratamento imediato. Essa abordagem de lei é conservadora, favorece a clandestinidade e o pânico moral.

Uma lei mais dura para quem transmite a doença intensificaria o estigma e a discriminação para os portadores, afirma Salvador. Além disso, com medo de sanções, as pessoas teriam mais receio de se testarem e descobrirem que têm a doença, atrasando o tratamento. Os remédios para pessoas com HIV conseguem diminuir consideravelmente a carga viral, deixando a transmissão pouco possível.

— Cientificamente, é difícil saber quando uma pessoa foi infectada. Até existem testes para isso, mas é complicado — afirma Carla Pereira, doutora em Ciências pela Fundação Oswaldo Cruz e pesquisadora dos direitos das pessoas com HIV, que se posiciona contra o PL.

As entidades também alegam que não há comprovação científica de que aprovação de uma nova lei traria benefícios para a luta na prevenção da doença. A UNAIDS também cita que essa lei poderia ser aplicada seletivamente, desfavorecendo a população mais vulnerável, como as mulheres. Com a dificuldade de encontrar provas para esclarecer a forma intencional da transmissão, pacientes com HIV poderiam ser erroneamente acusados.

— Já existe o arcabouço legal para os casos mais extremos de que se tem comprovação. Trazer uma nova lei incita o medo para as pessoas. O ideal é que as pessoas façam o teste e cheguem ao tratamento. Essa lei faz com que 800 mil pessoas tornem-se criminosos em potencial — aponta Georgiana Braga-Orillard, diretora do UNAIDS no Brasil.

O que diz a lei:

— A jurisprudência criminal oscila. Há quatro hipóteses. Vai do entendimento do Ministério Público — afirma o advogado e especialista em direito penal Marcelo Guazzelli Peruchin.

No Brasil, as quatro situações seriam de enquadrar a transmissão proposital de doenças como "lesão corporal gravíssima" ou até mesmo tentativa de homicídio. E no Código Penal, há dois artigos que tratam do tema da transmissão de doenças e preveem pena com prisão.

Para Marcelo, é de liberdade do legislador fazer classificar novas ações como crimes hediondos, inclusive, como essa proposta pelo deputado Pompeo de Mattos.

— A questão é se essa reclassificação e essas consequências seriam adequadas para esse tipo de conduta — afirma.

Pela lei, até mesmo quando a pessoa não tem o propósito de transmitir a doença para outra de forma ela pode ser penalizada. Casos da Justiça brasileira mostram condenações de pessoas que sabiam que tinham HIV e infectaram seus parceiros porque mantinham relações sexuais sem camisinha. Segundo a Justiça, essas pessoas assumiriam o risco de infectar a outra.

Como é em outros países:

— A Comissão Global sobre o HIV e o Direito, do Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento, recomenda em seu último relatório, de 2012, que os países não façam leis que explicitamente criminalizem a exposição ou transmissão de HIV. Essas leis, se já existentes, deveriam ser abolidas. "Os países podem legitimamente mover uma ação judicial contra a transmissão efetiva e intencional do HIV, usando a lei penal geral, mas tais atos judiciais devem ser adotados de forma cuidadosa e requerem um elevado nível de evidências e provas", diz parte do documento.

— De acordo com a entidade de advocacia HIV Justice Network, os únicos países na América do Sul com leis específicas de criminalização de HIV são a Colômbia, o Paraguai, o Equador e o Suriname.

— Na Europa, os países ocidentais como Portugal, Espanha, França e Alemanha não têm leis específicas que criminalizam a transmissão de HIV, mas já processaram pessoas por infectarem outras com base em leis penais já existentes.

— Nos Estados Unidos, cada Estado tem leis diferentes relacionadas ao tema. Alguns têm leis penais específicas sobre a transmissão de HIV. Em alguns lugares, cuspir e morder também são criminalizados, mesmo que esses atos não tragam riscos significantes de contágio. Em alguns casos, o cuspe e a boca foram até mesmo considerados como uma "arma letal". Os EUA são considerados um dos países em que há mais prisões relacionadas à transmissão da doença. As entidades americanas, inclusive o governo federal americano, pedem que os Estados utilizem as leis já existentes para punir casos específicos de transmissão intencional.

Entrevista com Pompeo de Mattos:

Por que o senhor quer criar essa lei? Já existe amparo para transmissão intencional de doenças no Código Penal.
Tudo tem no Código Penal, tudo deriva que tu causou um mal para alguém. Mas especificamente (para esse) não tem.

O que mobilizou o senhor para criar esse projeto?
Teve notícia de São Paulo e Rio de gente com aids sendo paga para fazer programa com outras para passar (a doença). Eu tenho o cuidado para não fazer da exceção a lei, a lei não pode ser a exceção. Vamos fazer esse debate de forma muito aberta, estamos tendo uma boa relação, vamos fazer audiência em conjunto. O debate não esgotou. Se eu não fizesse, outro colega ia apresentar um projeto e ia ser a mesma coisa.

Mas o senhor quer aprovar o projeto?
Se, no final, o entendimento é de que tem que retirar, ou então mudar, enfim, vamos chegar ao que é o melhor.

O senhor não conversou com esses grupos e entidades ligadas à aids e HIV antes de elaborar um projeto?
Não conversei na época, esse debate veio depois, eu dei vazão, eu absorvi o debate. Vamos fazer uma audiência pública, ela já foi requerida na comissão de seguridade social e vai ser tudo de comum acordo, em conjunto. Estou muito disponível para esse debate.

Não seria melhor ter feito o debate antes?
Normalmente, só vai para debate o que está em pauta. Pode não parecer, mas é a regra, tu só debate o que está em pauta. Se não tiver registrado, não vai a debate nunca. Lancei o projeto para o debate. No debate, eu posso convencer ou ser convencido. Não é porque eu lancei que tem que ser aprovado.

Qual a sua relação com a área da saúde?
Eu tenho bastante, por exemplo, sou da comissão da seguridade, que trata da questão de saúde pública. Não existe comissão de saúde na Câmara. E já estou no meu terceiro ano de comissão.

Você teve apoio de alguma entidade para criar o PL?
Vários (agentes) da segurança pública, a própria polícia, nas investigações, já detectou sérios problemas nessa ordem. Já houve casos de pessoas que deliberadamente transmitiram a doença, teve até matéria no Fantástico.

A polícia explicitamente apoia o projeto?
Não enquanto entidade, mas pessoas ligadas à área da segurança, que viram casos específicos.

Qual o próximo passo?
Vamos esgotar a matéria sem preconceito.


Autor: Paula Minozzo
Fonte: Zero Hora

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