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Saúde do santo ou moral do demônio?
 
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05/10/2009

Saúde do santo ou moral do demônio?

A lei antifumo, em vigor em São Paulo desde agosto, traz à tona discussões sobre o significado e os simbolismos tanto do cigarro quanto do ato de fumar

Em resposta a alguém que lhe perguntou em certa ocasião qual era o significado simbólico de um charuto, Sigmund Freud respondeu que, às vezes, um charuto é apenas um charuto. Mas podemos acrescentar que, justamente por ser um charuto apenas “às vezes”, há situações em que representa algo distinto. Na mitologia do próprio charuto ele já foi, por exemplo, símbolo do poder, o que, em termos psicanalíticos, pode ser chamado de “símbolo fálico”. Transportando essa questão para os dias de hoje, o que representa o cigarro na recente discussão acerca de sua proibição em locais públicos?

Em agosto entrou em vigor a lei antifumo em São Paulo com a promessa de ser igualmente implantada em outros estados. O argumento principal dos criadores da legislação é que muitos fumantes passivos – aqueles que sofrem os efeitos do fumo por exposição à fumaça do cigarro dos fumantes ativos – desenvolvem câncer de pulmão. Está comprovado o fato de haver um elevado número de mortes por esse motivo.

Uma primeira representação para o cigarro – aquele que mata – pode ser a de uma arma. Podemos usar nossa imaginação e dizer que, antes da lei antifumo, o fumante (ativo) seria, no máximo, acusado de homicídio culposo. Tratava-se de um delito provocado pela falta de cuidado objetivo do agente, imprudência, imperícia ou negligência.

No entanto, não há a intenção de matar. Mas agora a coisa mudou. Com a proibição de fumar para não espalhar sua fumaça-veneno (também podemos atribuir símbolos à fumaça), o cigarro-arma se tornaria a prova de um crime pior: o homicídio doloso. Este consiste na vontade livre e consciente de assassinar alguém. Por isso, a implementação da lei antifumo se faz acompanhar de um sistema de denúncias. O fumante-assassino deve imediatamente ser interceptado para não causar danos a outrem.

Mas o cigarro também representa o prazer. O próprio ato de fumar é prazeroso, dizem os fumantes. Acalma a ansiedade para alguns, é estimulante para outros. Também existe o cigarro depois da comida, do café e do sexo, que atua como complemento. Revela um prazer que se prolonga. Reafirma a satisfação obtida, pois tem valor de uma confirmação: “...sim, foi bom para mim”. Para muitos fumantes, acender um cigarro é um ritual em que corpo e espírito se encontram: prazer do corpo e simbolização desse prazer (no espírito) por meio do rito.
 

Curiosamente, a lei antifumo permite o cigarro em cultos religiosos, mesmo em ambientes fechados, desde que isso faça parte do ritual. Há que perguntar aos praticantes do culto o que o cigarro ou o charuto simbolizam naquele contexto. Afinal, por que seria mais legítimo do que o ritual particular de cada um na vida cotidiana?

Outra curiosidade é a permissão para fumar nas áreas a céu aberto nos estádios de futebol. O cigarro tem aí um poderoso efeito de acalmar a ira e a expectativa dos torcedores. É o “sossega-leão”: funciona como calmante. Mas, se o time querido marcar um gol... também se pode acender um cigarro-prazer e reafirmar a alegria do momento.

Nos ambientes de trabalho, mesmo que existam áreas abertas e jardins, não se pode fumar. Dizem que a fumaça se espalha e atinge os fumantes passivos. Talvez se espalhe de modo diferente, do modo como se propaga no estádio de futebol. A catarse coletiva justificaria o prazer. O trabalho, não. O cigarro-prazer, se fumado no ambiente de trabalho, enfrentaria a lei que parece dar um recado: a nossa sociedade exige produtividade. Onde há trabalho, não deve haver descanso. Mas existe – ou melhor, existia – também o cigarro-escape. Se o cigarro-charuto representa o poder, proibi-lo é uma forma de impedir a recuperação da autoestima. Sentir tensão, pressão ou sofrer humilhação (situações comuns em ambiente de trabalho) exige um recuo emocional, uma espécie de rearmamento. O cigarro-escape era também um cigarro-enfrentamento.

Cabe à União editar normas “gerais” sobre temas ligados à saúde. Estados e municípios editam normas complementares. Independentemente da questão que se coloca sobre a autonomia dos estados e municípios para estabelecer regras mais duras do que aquelas que foram ditadas pela União, devemos atentar para o fato de que alguém legisla sobre nossos corpos e nossos hábitos. “Biopoder” é o termo criado pelo filósofo e historiador francês Michel Foucault (1926-1984), na década de 70, para referir-se à prática dos Estados modernos de desenvolver um número sem igual de técnicas destinadas à subjugação dos corpos e ao controle das populações.

A transformação radical dos comportamentos por meio da abrupta imposição de novas regras não deveria ser exigida sem uma discussão prévia acerca do significado individual e coletivo desses mesmos comportamentos. O que significa o cigarro? O que significa fumar? Não se pode impunemente elencar comportamentos aceitáveis ou inaceitáveis a partir de uma moral do bem e do mal estabelecida com base no que se considera saudável, ou não, exclusivamente do ponto de vista biológico.

O problema que se coloca não é apenas o da luta pela saúde, mas o da maneira pela qual se exerce o poder. Como e em nome do que esse poder é exercido? Fazer proibições em nome da saúde de absolutamente todos é um equívoco denunciado por Foucault. É uma forma extremamente sutil e, por que não dizer, perversa, de instalar o poder. Autoridades da lei antifumo têm dito que o fumante não foi impedido de exercer sua liberdade individual, pois, afinal, ele pode beber, comer, dançar e depois, prazerosamente, fumar... dentro de sua própria casa. Um presidiário pode fazer o mesmo em sua cela. Diríamos que ele está exercendo a sua liberdade individual?

Consideremos a necessidade de evitar que os fumantes passivos desenvolvam sérios problemas pulmonares e venham a falecer. É legítimo buscar a saúde dessas pessoas e intervir de modo a atingir esse objetivo. É igualmente legítimo possibilitar que eles circulem por áreas amplas e não sejam constrangidos a conviver com fumantes. Mas a recíproca é verdadeira. Poderia haver bares, restaurantes, cafés, boates e jardins para um grupo e para outro. Se os “não fumantes” são maioria, que existam mais estabelecimentos e áreas próprias a eles. Caberia aos donos desses lugares optarem por sua clientela. Caberia ao governo criar incentivos para que alguns estabelecimentos garantissem exclusividade para “não fumantes”.

A saúde da moral ficaria assim garantida em vez de querer fazer prevalecer a moral da saúde, em que saudável seria igual a “bom” e “não saudável” equivaleria a “mau”. O risco de a medicina tomar o lugar da Igreja Católica em relação aos preceitos morais foi denunciado há muito tempo. Isso não significa que a própria medicina e mesmo a população tenham se dado conta disso. É fundamental entender que a saúde não compreende apenas o organismo, mas que necessariamente leva em conta a mente que representa, simboliza e dá significado aos fatos do corpo. Essa, sim, é uma percepção saudável de si mesmo e da vida em sociedade. Em tempo: não sou fumante.
 


Autor: Patricia Porchat
Fonte: Mente e Cérebro

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