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O mito do trauma
 
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03/02/2010

O mito do trauma

Livro nos EUA sugere que crianças abusadas sexualmente nem sempre ficam traumatizadas

Dados os interesses velados que permeiam todo o cenário médico atual, não é de se surpreender que o método científico seja muitas vezes mutilado no processo. Casos de dados ignorados ou manipulados para servir a uma agenda são como roubos num bairro violento: você ouve sobre eles o tempo todo, mas poucos casos são de fato examinados abertamente.

Assim, até mesmo leitores sem nenhuma relação pessoal ou profissional com o abuso sexual de crianças podem saber mais sobre a situação no livro "The Trauma Myth".

Para um projeto de pesquisa de pós-graduação de Harvard, em meados da década de 1990, a psicóloga Susan A. Clancy se preparou para entrevistar sobreviventes adultos do abuso sexual na infância, esperando confirmar a sabedoria tradicional de que quanto mais traumático o abuso, mais a probabilidade de a criança se tornar um adulto problemático.

Clancy achava que sabia o que iria encontrar: "Tudo que eu sabia dizia que o abuso era uma experiência horrível, que a criança ficaria traumatizada na época em que ele ocorria – sobrecarregada pelo medo, choque e horror".

Porém, muitas entrevistas cuidadosamente documentadas não revelaram nada do tipo. O mais comum era que o abuso tivesse sido algo confuso para a criança, mas não traumático no sentido comum da palavra. Apenas quando a criança crescia o suficiente para entender exatamente o que tinha acontecido – às vezes alguns anos depois – é que o medo, choque e horror começavam. E era apenas naquele momento que a experiência virava um trauma e se iniciava um processo autodestrutivo bem conhecido.

Clancy questionou suas descobertas, mas as reconfirmou e ficou convencida. Quando ela tornou públicos os dados, as pessoas ficaram indignadas.

Primeiro, seus dados claramente desafiavam décadas de teoria politicamente correta do trauma, teoria feminista e política sexual.

Segundo, Clancy descobriu que o mundo tinha pouco interesse pela sutileza científica: "Infelizmente, quando as pessoas ouviram 'não traumático quando ocorre', elas traduziram minhas palavras para 'isso não prejudica as vítimas no longo prazo'. Ou até pior, algumas pessoas deduziram que eu culpava as vítimas pelo seu abuso".

Clancy relata ter sido excluída de círculos leigos e acadêmicos. Ela foi "crucificada" na imprensa como "amiga dos pedófilos", colegas boicotaram suas palestras, consultores sugeriram que continuar sua trajetória acabaria com qualquer possibilidade de seguir carreira acadêmica.

Todo esse agito ao redor de uma pequena palavra – "trauma" – e uma mudança no seu cronograma. Por que isso importa de uma forma ou de outra?

Clancy sugere várias razões pelas quais seus dados tenham causado tanta agitação. Primeiro, toda uma estrutura acadêmica e terapêutica se baseia no velho modelo de abuso sexual; suas descobertas tinham potencial para minar uma série de caros tratamentos e projetos de prevenção.

Ao mesmo tempo, ela argumenta, é seu modelo que pode realmente ajudar as vítimas. Sobreviventes adultos de abuso na infância muitas vezes se envergonham de seu próprio comportamento quando crianças. Ao não lutar ou pedir socorro, eles culpam a si mesmos por colaborar com o agressor. Pode ser imensamente confortante para eles ouvir que sua reação, ou falta de reação, era totalmente normal.

O modelo de Clancy também dá sentido a toda a dolorosa questão da memória reprimida. A maioria dos eventos traumáticos tem tendência a ser vividamente lembrada. Mas se casos de abuso sexual estão simplesmente entre as muitas confusões que caracterizam a infância, eles são perfeitamente esquecíveis: "Por que uma criança deveria se lembrar deles se, quando ocorreram, não eram especificamente traumáticos?" Apenas quando reprocessadas e completamente entendidas é que as memórias mudam para o foco.

Mesmo sem todas essas questões práticas, a moral da história de Clancy está clara: a ciência deveria representar a verdade, não aspirações. Quando dados confiáveis ficam diante de teorias adoradas, a teoria tem de ir embora.

Clancy escreve com a precisão e repetição paciente de uma boa professora em terreno complicado. Sua prosa não poderia ser mais clara, e seus pontos são reafirmados muitas, muitas vezes. Porém, no site Amazon.com um comentário indignado de um leitor já ataca:

"É horrível", escreveu o leitor, "que 'especialistas' como Susan Clancy possam escapar depois de terem um livro publicado com um título que não é apenas falso, mas que diz aos transgressores sexuais: 'Vá em frente, abuse sexualmente de crianças, elas gostam e não vão ficar traumatizadas com isso'".

A ciência às vezes não é tão forte quanto a convicção, assim como a boa escrita.

E por falar em boa escrita, dois outros livros publicados este mês falham um pouco nesse sentido, mesmo prometendo mundos e fundos aos leitores.

Em "The Language of Life", Dr. Francis S. Collins, diretor dos Institutos Nacionais de Saúde e renomado pesquisador do genoma humano, conduz um passeio pela terra lendária da medicina genética personalizada, que teoricamente está para acontecer a qualquer momento.

Usando seu próprio genoma como guia, Collins cobre o território familiar de genes associados ao câncer, depois segue para regiões mais misteriosas que governam o envelhecimento e a suscetibilidade a infecções diversas. Deveria ser uma viagem empolgante, mas, veja só, se você é daqueles cujas pálpebras começam a baixar quando os nucleotídeos chegam marchando, esse livro vai lhe fazer adormecer.

Em "The Language of Pain", Dr. David Biro, dermatologista de Nova York, se dá a tarefa de criar a retórica da dor. "A dor é difícil de expressar", escreve Birô. "Acabamos apertando nossas mãos e nos resignando com o silêncio" – daí a legião de equívocos no tratamento adequado da dor.

No ano 2000, num livro de memórias, "One Hundred Days", Birô escreveu de forma comovente sobre sua própria experiência com uma rara doença no sangue, que acabou sendo curada com um transplante de medula óssea. Porém, nesse livro seu toque pessoal foi embora; em vez disso, ele cuidadosamente explora as grandes obras de arte, literatura e filosofia para buscar metáforas relacionadas à dor. O resultado é o mesmo de uma tese avançada bem-feita – abrangente e cheia de boas intenções, mas não muito agradável de ler.

Notas de publicação:

'THE TRAUMA MYTH'
The Truth About the Sexual Abuse of Children – and Its Aftermath.
De Susan A. Clancy. Basic Books. 236 páginas. US$25.

'THE LANGUAGE OF LIFE'
DNA and the Revolution in Personalized Medicine.
Por Francis S. Collins, M.D. HarperCollins. 332 páginas. US$26.95.

'THE LANGUAGE OF PAIN'
Finding Words, Compassion and Relief.
Por David Biro, M.D. W.W. Norton. 256 páginas. US$24.95.

Tradução: Gabriela d'Avila

 


Autor: Por Abigail Zuger, M.D. The New York Times
Fonte: Uol Ciência e Saúde

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