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Há vida fora da câmara escura
 
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31/10/2012

Há vida fora da câmara escura

Amy Hildebrand, fotógrafa americana que superou a cegueira, inspiradora do Projeto Saber Viver do Hospital Mãe de Deus

Amy Hildebrand nasceu cega. Completamente cega. Além do infinito em idealização e expectativas que carregam os primogênitos, Amy também foi recepcionada na cidade americana de Cincinnati, no estado de Ohio, com uma sentença e uma esperança. A primeira, proferida pela equipe médica que conduziu o parto e a avaliação do bebê: a menina alva como nuvem, portadora de albinismo, jamais enxergaria. A segunda, acalentada pelos pais, nascia também ali e se manteria para sempre inabalável: a nova família, oficialmente recém inaugurada, não se conformaria com essa previsão.

Pode-se deduzir que algo de bom e bonito aconteceu entre o veredicto comunicado na maternidade e o mês de outubro de 2012, quando Amy, já uma respeitada fotógrafa de 27 anos, visitou Porto Alegre a convite do Hospital Mãe de Deus para o lançamento do projeto Saber Viver sobre valorização da vida.

Paciente de tratamentos experimentais desde os primeiros meses, ela se libertou da escuridão completa lentamente. Não que considerasse ruim o breu que habitava – se não conhecia outra vida, que tipo de comparação poderia estabelecer para concluir que era infeliz? O avanço foi gradual, o que a impede de divisar com exatidão o marco que sinaliza o antes e o depois, a cegueira absoluta e a visão, ainda que bastante comprometida. O albino produz pouca ou nenhuma melanina, pigmento que colore os olhos, a pele e o cabelo, desenvolvendo problemas de visão e grande sensibilidade ao sol.

Amy relata que a força que impulsionou o otimismo familiar nunca foi desesperada. Buscar um tratamento eficaz para a menina de aparência quase translúcida não era uma obsessão. Caso algo funcionasse, ótimo. Se tudo falhasse, todos estariam empenhados em se adaptar da melhor maneira possível.

– Lembro do piso de linóleo vermelho na cozinha. O sol entrava pela janela, e a poeira pairava no ar. Lembro de simplesmente deitar lá e ficar olhando o sol incidindo sobre o piso, o contraste entre o vermelho do linóleo e a luz, as sombras, minha mãe fazendo as tarefas domésticas. As cores eram tão vívidas – conta, resgatando um episódio da época de seus dois ou três anos de idade, naquele que considera ser o seu primeiro registro visual.

A americana capta imagens com inspiração de artista, sempre com o objetivo de que suas fotos resultem fiéis à maneira como ela própria absorve os personagens e os cenários que transitam em frente à sua lente – casamentos e crianças estão entre os temas preferidos. Amy depende de cores fortes e contrastes para subtrair do universo ao redor o máximo de nitidez. O grafismo de linhas e formas interrompidas ou desfocadas, e o efeito de névoa que encobre seus retratos, permitem ao observador compartilhar com ela uma sensação de entendimento.

– Sempre me senti confortável com uma câmera nas mãos. Parecia o jeito mais natural de me expressar. Me perguntavam como eu enxergava o mundo, e nunca encontrei uma maneira adequada de responder isso. Até começar a fotografar.

A idealizadora do blog With Little Sound (withlittlesound.blogspot.com), um dos trabalhos mais exaltados de seu currículo, com mil fotos tiradas ao longo de mil dias ininterruptos, esteve na Capital acompanhada do marido, o também fotógrafo Aaron, que conheceu dentro de uma câmera escura na faculdade. Casados há sete anos, eles são pais de Jude, cinco anos, e Daisy, três, que não desenvolveram o albinismo.

O trabalho de Amy Hildebrand está em exposição no Hospital Mãe de Deus até 31 de outubro, das 8h às 18h. Com cenários bucólicos, crianças e jogo de luzes e cores, as fotos fazem parte de um trabalho pessoal da fotógrafa intitulado 1000 Fotos em 1000 Dias concluído em 12 junho deste ano.

A convite de Donna, Amy aceitou passear pela Redenção, compondo com suas impressões de turista um breve ensaio de um dos endereços mais queridos da cidade. As fotos feitas por ela e o making of do passeio no parque podem ser visto na página 26 e também no site da revista.

Fotografia de Amy Hildebrand

Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

Donna – Como foi ser criança sem enxergar?

Amy Hildebrand – Passei por muitos tratamentos. Como era a única vida que eu conhecia, não achava que fosse diferente de qualquer outra. Nunca me surpreendi ao comparar a minha vida com as vidas dos meus amigos. Em casa, fazíamos uma série de exercícios simples. A visão de um dos meus olhos é bem pior do que a do outro. Quando eu era bebê, cobriam o meu olho melhor, forçando o olho pior a trabalhar mais e se fortalecer. E funcionou, até certo ponto. Depois usei lentes, óculos, às vezes relutando muito.

Donna – Você não conseguia ver nem vultos?

Amy – Nada. Diagnosticaram cegueira completa quando nasci. Os médicos disseram: “É isso, não há o que fazer”.

Donna – Eles não deram nenhuma esperança aos seus pais?

Amy – Não. Apenas explicaram como uma pessoa cega vivia. Citaram o que eu poderia fazer e uma longa lista do que não poderia fazer. Mas meus pais sentiram que as possibilidades eram mais amplas. Imaginaram que deveria haver pessoas lá fora se sentindo da mesma maneira que eles. E então eles leram algo sobre uma estudante de medicina, na cidade onde morávamos, conduzindo um estudo sobre o desenvolvimento da visão na infância. Contataram-na, e eu passei a usar lentes. Há uma foto minha, com cerca de cinco meses, tentando tocar a luz do sol batendo no chão. Meus pais ficaram tão emocionados que tiraram uma foto. Foi um grande avanço.

Donna – E os anos de escola?

Amy – Sou muito grata por ter frequentado uma escola que oferecia muitas atividades aos alunos. As crianças podiam se movimentar livremente na sala de aula. Eu podia deixar minha mesa e procurar um lugar melhor por causa da luz. Sou muito sensível ao sol e à luz. A luz agride o meu olho porque não tenho o filtro natural que todos têm. Me dá fortes dores de cabeça. Os professores eram muito prestativos e usavam canetas de uma cor que contrastasse com a superfície branca do quadro, para que eu pudesse enxergar mais facilmente. Os meus livros tinham letras maiores, minha mãe militava pela inclusão de estudantes, e essas coisas me davam a sensação de estar vivendo uma vida normal junto das outras crianças. Tinha muitos amigos, nunca me senti rejeitada. A experiência e o ambiente foram muito saudáveis para mim.

Donna – Então você nunca frequentou uma escola para cegos ou estudou braile?

Amy – Não. Acho que meus pais pensaram assim: se ela achar que precisa ir para uma escola de cegos, então vamos deixá-la ir. Se sentir que pode levar a mesma vida que os outros levam, então é o que faremos.

Donna – Você lembra como se sentiu quando começou a enxergar?

Amy – Foi um processo muito lento e gradual. Na época, eu não me dava conta de que as outras pessoas enxergavam de maneira diferente. Não registrava muito isso. Mas tenho, sim, diversas lembranças da juventude. Cores, muitas cores, por todos os lados. Ficava fascinada com a luz no chão ao entardecer. Geralmente, a lembrança mais remota de uma criança é algo muito significativo, como o nascimento de um irmãozinho, um novo membro passando a fazer parte da família. Acho que li isso em um livro. Aos dois ou três anos, lembro do meu irmão recém-nascido chegando do hospital, mas também do chão de linóleo vermelho na cozinha. Era um apartamento muito antigo. O sol entrava pela janela da cozinha, e a poeira pairava no ar. Lembro de simplesmente deitar lá e ficar olhando o sol incidindo sobre o piso, o contraste entre o vermelho do linóleo e a luz, as sombras, minha mãe fazendo as tarefas domésticas. As cores eram tão vívidas. Eu amava isso. É como se fosse um sentimento aliado a uma experiência visual. É algo muito forte para mim. Muita cor, mas também muito amor. Não sei se isso faz algum sentido para você (risos).

Donna – Essas lembranças e sensações estão intimamente relacionadas ao trabalho que você desenvolve hoje, fotografando crianças e cenários com intensos contrastes de cor.

Amy – Reflito muito sobre o sentido da cor no meu trabalho. Ao fotografar, penso: como posso fazer com que essa cor se pareça com o que eu vejo? É tão vibrante para mim.

Donna – O mais curioso é o fato de que você, mesmo com uma séria limitação na visão, escolheu uma carreira que depende fundamentalmente da capacidade de enxergar. Foi uma espécie de desafio?

Amy – Na adolescência, peguei uma câmera, comecei a usá-la e passei a me sentir diferente. Não foi de repente que descobri que era aquilo o que eu gostaria de fazer. Sempre me senti muito confortável com uma câmera nas mãos. Parecia o jeito mais natural de me expressar. Me perguntavam como eu enxergava o mundo, e nunca encontrei uma maneira adequada de responder isso. Até começar a fotografar. E então me dei conta de que poderia usar aquela ferramenta para me conectar com as pessoas. Não apenas eu me conectar a elas, mas elas se conectarem comigo, com o que vejo.

Donna – Como é a sua visão hoje?

Amy – Não muito boa. Daqui até aquela televisão (que está fixada na parede, a uns 10 metros de distância, na recepção do hotel em que ela está hospedada), sei que está passando um jogo de futebol. Reconheço o ângulo da câmera e o verde do gramado, mas não consigo ler o que aparece escrito na tela, não vejo o rosto dos jogadores.

Há vida fora da câmara escura - parte 3
Donna – E dá para ler?

Amy – Depende de muitas variáveis: a fonte da letra, o contraste da tinta impressa com o papel. Por exemplo: consigo ver o seu rosto agora, mas não os seus olhos. Sei que eles estão aí por causa do que deduzo do contexto. Interpreto muito o contexto ao longo do dia.

Donna – Seus pais tiveram cinco filhos (os únicos não albinos são dois meninos gêmeos), além de adotar uma menina albina da Índia. Eles sabiam ser portadores dessa condição genética que pode causar o albinismo?

Amy – Não. Descobriram quando eu nasci. O histórico familiar, dos dois lados, não mostra nenhum sinal do problema. É algo tão raro alguém ser portador do gene e conhecer uma pessoa que também é portadora e então o casal ter um filho com albinismo... É muito raro. Mas, por algum motivo, a desordem apareceu em três das quatro gestações de minha mãe.

Donna – Eles sentiram medo?

Amy – Não acho que tenham pensado nisso. Imagino que pensassem apenas que gostariam de formar uma família. O irmão que veio logo depois de mim foi o único filho planejado (risos). Acho que eles não queriam que eu fosse filha única, então valia arriscar. Mas aí eles já sabiam como lidar com o problema. Meu irmão logo começou a usar lentes de contato também. Não temos o mesmo nível de visão, a dele é pior, mas ele está bem, trabalhando como gerente de um café. Acredito que tudo esteja relacionado ao ambiente onde crescemos. Ninguém nunca nos disse que não poderíamos fazer algo. Fazíamos. E quando não conseguíamos, meus pais diziam que era porque talvez não fosse adequado para nós. Nunca disseram algo como “você não pode por causa do seu problema de visão”. Em vez disso, explicavam: “Você não consegue porque não é o que Deus quer para você”. Acho que foi uma perspectiva saudável para nós.

Donna – E para você? Foi difícil tomar a decisão de engravidar?

Amy – Não hesitamos porque não havia a possibilidade de que meus filhos nascessem albinos. Talvez meus netos sejam albinos porque meus filhos são portadores dos genes. Esta questão deverá surgir para os meus filhos, mas não vejo isso acontecendo. Sou a mãe deles, e eles não me veem como sendo diferente de qualquer outra mãe por aí. O fato de os tios e a tia deles serem albinos também ajuda. Eles cresceram nesse ambiente, pensando que somos pessoas comuns, como as que fazem parte de qualquer outra família.

Donna – Um de seus projetos mais comentados é o blog With Little Sound, em que você postou mil fotografias ao longo de mil dias. Houve algum planejamento? Tirar uma foto por dia passa a ideia de viver com certa serenidade, um dia de cada vez.

Amy – Exatamente. Foi o meu projeto mais extenso e mais recompensador. Tive a ideia a partir da frustração e do medo de que estivesse perdendo todo o conhecimento adquirido na faculdade, além do dinheiro investido (risos). Foi a primeira coisa que me motivou. Depois veio o medo de perder memórias. Eu não queria que desaparecessem lembranças importantes dos primeiros momentos com a família que estava formando. Queria criar minha própria arte, fazer o que tinha vontade, e não o que alguém me mandasse fazer. Tivemos nossos filhos, compramos uma casa, e eu estava pronta. Quando vi o blog de um amigo, surgiu a ideia. Ele postava uma foto e escrevia algo de vez em quando, como se fosse um diário. Pensei que gostaria de criar algo parecido sobre a minha própria vida, mas com o compromisso de tirar uma foto por dia. Meus filhos tinham seis meses e dois anos na época. Eu não dispunha de muito tempo livre, então queria algo administrável. Lembro de contar a Aaron, em setembro de 2009, sobre esse projeto, e ele achou muito legal e me incentivou. No outro dia comecei, sem pensar muito. Quando você pensa muito, começa a se convencer a não fazer.

Donna – Voltando a algo mencionado antes: na infância, você disse que não se dava conta de que havia uma diferença em relação a seus amigos. Você a percebeu quando passou a enxergar? Para quem nunca enfrentou restrições tão marcantes, fica mais complicado entender.

Amy – Foi um processo tão lento, que sempre fez parte da minha vida. Sempre fui ao oftalmologista para tentar melhorar, mas isso era encarado de maneira positiva. Não era algo como “você precisa melhorar para ter uma vida plena”, mas sim “vamos ver se conseguimos melhorar, vamos tentar”. Nunca tive a sensação de que estava perdendo algo. Nunca existiu um marco drástico entre o antes e o depois. Foi gradual. Agora consigo refletir e agradecer. Todo adolescente está atento às diferenças em relação aos demais. Eu sentia isso, mas me dava conta do quanto minha vida era diferente pelo fato de meus pais terem trilhado certos caminhos e acreditado que as coisas poderiam mudar se continuássemos rezando e procurando tratamentos. Eu via crianças frequentando escolas para cegos e pensava: “Estive tão próximo de estar vivendo assim. Que bom que não estou no lugar delas”. Reconheci que poderia ter estado naquele outro lugar, mas em vez disso estou aqui. Sempre reflito sobre isso. Parece que havia um caminho: poderíamos ter ido para a direita, mas fomos para a esquerda. Foi uma escolha muito fácil, mas fez uma diferença muito grande na minha vida. 


Autor: Caderno Donna ZH, p. 20, dia 28.10.12
Fonte: Zero Hora

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