Contar a uma criança que ela está doente costuma ser uma tarefa que os pais executam sem maiores problemas. Afinal, ao explicar que se trata de algo passageiro, e que será preciso apenas tomar um remedinho para que o dodói vá embora, os pequenos costumam aceitar os cuidados e seguir em frente com a rotina. Mas e quando se trata de algo grave e mais delicado, como, por exemplo, um câncer? Será que é possível passar coragem aos filhos e ajudá-los a encarar o tratamento?
Poucas são as famílias em que não há um caso de câncer do qual a criança tenha ouvido falar.
Muitas vezes, a vovó, um tio distante, ou mesmo um dos pais já precisou enfrentar a doença. Só que, como em alguns dos casos, infelizmente, a batalha pode ter acabado de uma maneira triste, a simples menção da palavra “câncer” talvez já assuste o pequeno paciente.
Mesmo assim, a coisa mais importante nesse momento é não mentir para a criança. Como recomenda Vicente Odone, oncologista e especialista em câncer infantil, enganar um filho doente quebra a relação de confiança que ele tem com os pais de maneira definitiva.
— Os pais podem dizer que a criança está com uma doença que não é a mesma coisa que uma gripe ou uma dor de barriga, e que vai exigir muito do papai, da mamãe, dos médicos e, sobretudo, dela mesma, mas que vão estar todos juntos com ela para ajudar.
“Eu vou morrer?”
E, mesmo que surja a temida pergunta sobre a possibilidade de morte, Odone reforça que é importante manter a honestidade. De maneira palatável, com palavras adequadas à idade da criança e sem termos técnicos, os pais precisam abrir o jogo e falar a verdade.
— Pode-se responder que todos nós vamos morrer um dia, o que é um fato. E, junto com isso, mostrar ao filho que todos estão lutando juntos para que a doença não venha a causar esse tipo de desdobramento.
A forma mais comum de câncer pediátrico é a leucemia linfoide aguda. Suas chances de cura chegam a 90%. O oncologista explica ainda que, caso a doença não retorne até quatro anos e meio após seu diagnóstico, a chance de que ela volte é estatística e praticamente nula.
Dez anos depois, caso não haja o retorno do câncer nem o surgimento de qualquer efeito colateral dele, a expectativa de vida dos pequenos pacientes passa a ser igual à de quem nunca passou por um quadro de leucemia.
Enquanto a média de duração do tratamento de outras formas de câncer é de cerca de seis meses a um ano, a da leucemia linfoide aguda é de mais ou menos dois anos e meio. E, como explicar a uma criança que ela precisará passar tanto tempo lutando contra uma doença pode ser complicado, Odone dá algumas dicas aos pais.
— É importante dizer à criança que o tratamento inclui medicamentos que são via oral, mas que também há outros na veia, e que é preciso que a família e o médico sejam incisivos para que ela fique boa logo. Sobre a quimioterapia, explicamos tudo aos adultos com riqueza de detalhes, para que eles conheçam o processo todo. Às crianças, devemos destacar nossos esforços em explicar coisas que serão mais óbvias na rotina deles, como a necessidade de ficarem afastadas de coisas que elas prezam, a restrição às atividades físicas etc.
Queda de cabelo
Em sua experiência em atendimentos a crianças e adolescentes, Odone conta que é raro ver pacientes infantis que se importem com os efeitos colaterais estéticos da quimioterapia. Segundo o médico, esta costuma ser uma questão mais complicada para os pais.
No entanto, se o pequeno manifestar algum tipo de incômodo com a perda dos cabelos, por exemplo, pai e mãe podem de pronto ajudá-lo a providenciar uma peruca. Na opinião do oncologista, o foco nestes momentos é atender às necessidades que a criança expressa, sem fazer daquilo um drama.
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Recorrer a narrativas lúdicas pode ajudar a explicar o que se passa dentro do corpo durante o combate ao câncer. Com base na idade da criança, e no seu consequente grau de compreensão do mundo, é possível, por exemplo, explicar que as células estão brigando entre si, e que a hora agora é de acabar com aquelas que estão causando problemas.
No caso de filhos pequenos, Odone sugere apelar para algo ainda mais simples, como dizer que há “um bichinho” que se espalhou pelo corpo da criança, e que será preciso localizá-lo e eliminá-lo.
— Independentemente da maneira que se encontre para falar sobre a doença, o mais importante é que a criança se sinta parte do processo todo, que ela não seja jogada em uma rotina médica, sem ideia do que está acontecendo.
Lançada pela Associação Viva e Deixe Viver, com apoio do laboratório médico Pfizer, a série de livros infantis Eu e a Célula é um bom reforço em situações como esta, porque aborda o universo dos cuidados médicos com linguagem acessível e, mais importante, sem assustar ninguém.
Mundo cruel
Presidente da organização, fundada em São Paulo em 1997, e que tem como objetivo reunir e treinar voluntários para a contação de histórias em hospitais, Valdir Cimino avalia que proporcionar momentos de fantasia em meio à rotina da internação colabora não só com o humor dos pacientes, mas também com a adesão ao tratamento.
— A criança adoentada está vulnerável e aberta a qualquer tipo de experiência que a tire daquele mundo cruel. Ela, muitas vezes, nem entende pelo que está passando. Com as histórias, as tiramos da dor e do sofrimento, e a transportamos para o mundo da imaginação. Não é fácil, mas vemos muitas crianças chorando pararem de chorar. O grande valor do trabalho é empoderar as crianças, e mostrar a elas que é possível encontrar alívio em meio ao processo curativo.
Cimino recorda episódios marcantes na trajetória da associação, como quando um pequeno paciente se recusou a ouvir a história alegando que “suas células não estavam se falando”. Ou quando o caso era de um menino com câncer terminal, que perguntou aos voluntários o que havia “do outro lado”, e que acabou falecendo enquanto a história era contada.
Tanto o presidente da Viva e Deixe Viver quanto o oncologista Odone concordam que o fundamental às famílias com crianças afetadas pelo câncer é manter o otimismo. Para o médico, ficar ao lado dos filhos sem trazer angústia e desespero faz toda a diferença.
— Os pais têm que se manter confiantes. É um otimismo realista, mas entendendo que aquela luta vale a pena. É preciso manter em mente que a equipe médica não tem poderes mágicos, mas também lembrar que é preciso haver cumplicidade entre todos, mantendo sempre tudo bem esclarecido, inclusive para a criança.