Nos últimos 10 anos, até 2018, de acordo com dados do Ministério da Saúde, foram notificados mais de 190 mil casos de violência sexual, sendo 58.037 (31,5%) contra crianças e 83.068 (45,0%) contra adolescentes. Chama atenção a vulnerabilidade dos mais jovens. Entre as crianças, o maior número de casos de violência sexual acontece com crianças entre 1 e 5 anos (51,2%). Já entre os adolescentes, com os jovens entre 10 e 14 anos (67,8%).
Sabe-se através de depoimentos e estudos de especialistas na área, que a maioria das ocorrências, tanto com crianças quanto com adolescentes, ocorre dentro de casa e os agressores são pessoas do convívio das vítimas, geralmente familiares, e a violência tende a ser praticada mais de uma vez.
A neuropsicóloga Roselene Espírito Santo Wagner é uma das estudiosas que se dedica a este tema, que é ainda cercado de tabu na sociedade e cujas vítimas sofrem em sua maioria em silêncio. Ela fala sobre as consequências do abuso sexual de jovens e define o conceito: “Define-se abuso ou violeÌ‚ncia sexual na infaÌ‚ncia e adolesceÌ‚ncia como a situação em que a criança, ou o adolescente, eÌ usada para satisfação sexual de um adulto ou adolescente mais velho, incluindo desde a praÌtica de cariÌcias, manipulação de genitaÌlia, exploração sexual, voyeurismo, pornografia, exibicionismo, ateÌ o ato sexual, com ou sem penetração, sendo a violeÌ‚ncia sempre presumida em menores de 14 anos”.

Perfil do abusador
A Dra. Roselene Wagner aponta que geralmente é de difiÌcil suspeita e complicada confirmação a identificação do abusador: “Porém, é claro para nós profissionais envolvidos, que, os casos de abuso sexual na infaÌ‚ncia e adolesceÌ‚ncia são praticados, na sua maioria, por pessoas ligadas diretamente aÌ€s viÌtimas e sobre as quais exercem alguma forma de poder ou de dependeÌ‚ncia”.
Ela também revela que o abuso sexual não necessariamente é acompanhado de violência e agressões físicas visíveis, o que torna ainda mais complexa a identificação das vítimas: "Nem sempre o abuso é acompanhado de violeÌ‚ncia fiÌsica aparente e pode se apresentar de vaÌrias formas e niÌveis de gravidade, o que dificulta enormemente a possibilidade de denuÌncia pela viÌtima e a confirmação diagnoÌstica pelos meios hoje oferecidos pelas medidas legais de averiguação do crime”.
Consequências na vida adulta do menor que sofreu abusos
A especialista cita efeitos psicoloÌgicos do abuso sexual e ressalta como eles podem ser devastadores: “os problemas decorrentes do abuso persistem na vida adulta dessas crianças. Essas viÌtimas são submetidas a uma violação inominável e apresentam tristeza constante, prostração, sonoleÌ‚ncia diurna, medo exagerado de adultos, habitualmente aquele do sexo do abusador, além de apresentarem histoÌrico de fugas, comportamento sexual adiantado para idade, masturbação frequente e descontrolada, tiques ou manias, enurese ou encoprese e baixo amor-proÌprio na vida adulta”.
Além disto, a neuropsicóloga também salienta que existe a possibilidade de transitar da passividade da experieÌ‚ncia para a atividade e aplicar ao mundo externo a agressão que lhe foi conferida: “a criança se desforra por procuração. Assim, estabelece-se um processo defensivo, o qual tende a se perpetuar, que é a identificação com o agressor como uma maneira psiÌquica de sobreviver ao abuso. A viÌtima, ao se igualar com o seu agressor e se converter em molestadora, torna o abuso sexual um legado passado aÌ€ proÌxima geração de viÌtimas. De outra forma, poderaÌ apresentar a possibilidade de estabelecer uma relação abusiva consigo mesmo, como acontece nos casos de revitimização”.
A vulnerabilidade aÌ€s sequelas do abuso sexual depende do tipo de abuso, de sua cronicidade, da idade da viÌtima e do relacionamento geral que tem com o agressor: "Seus efeitos podem ser devastadores e perpeÌtuos, não estando descrito, no entanto, nenhum sintoma psiquiaÌtrico especiÌfico resultante do abuso sexual. Essa sequeÌ‚ncia vai provocar uma cascata de reações de autodefesa ou de autodestruição, na dependeÌ‚ncia da assisteÌ‚ncia e proteção oferecidas a essas viÌtimas”, salienta.

Por que as crianças se calam sobre os abusos sofridos?
A pesquisadora responde com base nas experiências profissionais e em estudos de casos da literatura médica e da psicologia: "Sentindo-se desprotegida pelo outro responsaÌvel, habitualmente a mãe, que permitiu a aproximação do abusador, insegura por imaginar que realmente não seria ouvida ou acreditada, envergonhada tanto pelo que passa, como pela sua impossibilidade de denunciar, por seu amor proÌprio reduzido e, ainda, ameaçada por aquele de quem habitualmente depende fiÌsica e emocionalmente, ela se cala, muitas vezes. Há um pacto familiar de sileÌ‚ncio. Isso demonstra a distorção que a sociedade manteÌm nesse tipo de violeÌ‚ncia, quando remete habitualmente a imagem do agressor ao estranho, marginal ou psicopata de rua”.
O abuso sexual atinge a ambos os gêneros
EÌ preciso que se leve em conta, tambeÌm, que o abuso sexual ocorre para os dois sexos: “a maior incideÌ‚ncia seja em vítimas do sexo feminino, mas ambos estão sujeitos a serem molestados. Os casos mais frequentes de violeÌ‚ncia sexual ateÌ a adolesceÌ‚ncia são decorrentes de incesto, ou seja, quando o agressor tem ou manteÌm algum grau de parentesco com a viÌtima, determinando muito mais grave lesão psicoloÌgica do que na agressão sofrida por estranhos”.
Em algumas situações, quando o incesto eÌ revelado, as mães podem reagir de modo diferente do esperado e trazer complicações adicionais: “algumas reagem com ciuÌmes, colocando a filha como rival e lhe atribui a responsabilidade pelo ocorrido. Para corroborar com essa praÌtica, estaria a dificuldade de a mãe reconhecer o incesto, pois seria o reconhecimento de seu fracasso como mãe e esposa, enquanto que o abusador usa de todos os meios para manter seus atos em sileÌ‚ncio e encobertos. EÌ possiÌvel, então, concluir que o abuso sexual faz parte de um conjunto de rupturas de relacionamentos, em uma estrutura doente familiar, mantendo, na maioria dos casos, uma cegueira e surdez coletiva aos apelos, muitas vezes mudos, da viÌtima.
Acolhimento e Amparo
Na opinião da especialista, o acolhimento da criança ou adolescente e de sua dor eÌ o primeiro passo para um bom resultado do tratamento fiÌsico e emocional que serão necessaÌrios: "A escuta de sua histoÌria, livre de preconceitos, sem interrupções ou solicitações de detalhamentos desnecessaÌrios para a condução do caso, vai demonstrar respeito a quem foi desrespeitado no que tem de mais precioso, que eÌ seu corpo, sua imagem e seu amor-proÌprio”.
A Dra. Roselene afirma que o psicólogo deve lembrar sempre que estaÌ diante de uma criança extremamente fragilizada: “a vítima está confusa em seus sentimentos, humilhada, envergonhada, culpada, desamparada. EÌ preciso que se crie um bom viÌnculo, nunca prometendo o que não se pode cumprir, como, por exemplo, que essa violeÌ‚ncia não mais aconteceraÌ, ou que a criança estaraÌ sempre protegida, ou que nunca mais irá lembrar disso. Deve-se diferenciar a condução do atendimento inicial para as situações agudas do estupro ou outra forma de abuso sexual que são emergenciais e demandam uma sequeÌ‚ncia de condutas de assisteÌ‚ncia imediata, tanto aÌ€ sauÌde fiÌsica como emocional, daquelas croÌ‚nicas e repetitivas, ambas extremamente desastrosas para a criança ou adolescente”.
Procedimentos legais no combate ao abuso
Nos casos agudos, com menos de 72 horas do ocorrido, as medidas legais jaÌ devem acompanhar toda assisteÌ‚ncia inicial de diagnoÌstico e tratamento. Para fins de processo judicial e a necessaÌria comprovação da agressão sexual, bem como a confecção de exames que levem aÌ€ identificação do agressor, eÌ preciso que os responsaÌveis façam um boletim de ocorreÌ‚ncia em delegacia de poliÌcia, que requisitaraÌ o laudo pericial do Instituto MeÌdico Legal. Na recusa dos responsaÌveis em fazer a denuÌncia, a hipoÌtese de autoria, coniveÌ‚ncia ou impoteÌ‚ncia deve ser levantada, sendo então obrigatoÌria a presença do Conselho Tutelar, assumindo o poder de tutela provisoÌria pela viÌtima e o apoio aÌ€s atitudes de proteção que se fizerem necessaÌrias. Na falta do Conselho Tutelar, a Vara da InfaÌ‚ncia e Juventude deve ser acionada.