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Em busca do Viagra cor-de-rosa
 
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25/11/2009

Em busca do Viagra cor-de-rosa

Uma nova droga está em testes para combater a falta de desejo feminino

Sexo, todo mundo sabe, é o grande barato do século XXI. Nunca se falou tanto do assunto, nunca ele foi considerado tão importante, nunca se gastou e se ganhou tanto dinheiro com isso. Basta olhar os números de crescimento populacional - em 2050 seremos 9 bilhões de pessoas neste pequeno planeta apertadinho - para perceber outra óbvia novidade: nunca se fez tanto sexo como se faz agora. Não obstante, uma parcela imensa da população humana parece estar à margem dessa festa. Algo como 1 bilhão de pessoas. Calcula-se que 30% das mulheres sofram de uma disfunção sexual chamada de Transtorno do Desejo Sexual Hipoativo (TDSH). Trata-se de uma doença descrita pela Organização Mundial da Saúde e pela Associação Americana de Psiquiatria.

Ela é caracterizada pela ausência de desejo sexual por um período superior a seis meses. Não é que essas mulheres não tenham parceiros, não tenham orgasmos ou não saibam obter prazer de alguma forma. Elas simplesmente não têm vontade. São "frígidas", para usar uma terminologia velha e quase insultuosa. E sofrem imensamente com isso. O desejo hipoativo, segundo os médicos especialistas, é uma grande fonte de angústia feminina. Essa é a notícia ruim. A notícia boa é que o primeiro tratamento destinado especificamente a esse problema poderá chegar ao mercado entre o fim de 2010 e o início de 2011. Na última terça-feira, dia 17, o laboratório alemão Boehringer Ingelheim apresentou, durante um encontro médico na França, os resultados de um estudo que demonstrou a eficácia de uma substância chamada flibanserina no tratamento da baixa libido (leia na próxima página o quadro com os resultados completos do estudo). As voluntárias que receberam o medicamento, já batizado "Viagra cor-de-rosa", eram maiores de 18 anos, ainda não haviam atingido a menopausa e estavam em relações "estáveis, monogâmicas e heterossexuais" por pelo menos um ano. Todas sofriam de TDSH. O estudo reuniu dados recolhidos por sete grupos de testes envolvendo mais de 5 mil europeias e americanas ao longo de 48 semanas. Enquanto tomavam o novo medicamento, pediu-se a elas que relatassem eventos sexuais de qualquer espécie. Valiam relação sexual, sexo oral, masturbação ou estimulação genital pelo parceiro. O questionário perguntava se o ato foi satisfatório ou não.

As 738 participantes do teste publicado na revista científica Journal of Sex Research relataram um aumento médio de 96% no número de "eventos sexuais satisfatórios" por mês. Ou seja: elas passaram a sentir prazer mais vezes (sozinhas ou com parceiros), embora não chegassem necessariamente ao orgasmo. Antes do tratamento, elas tinham em média 2,7 situações satisfatórias por mês. Depois de tomar doses diárias de 100 gramas de flibanserina por 24 semanas, elas passaram a reportar aos médicos uma média de 5,3 episódios por mês. As participantes também disseram sentir mais desejo sexual de forma genérica e menos ansiedade com sua performance erótica. Em outras palavras, ficaram mais felizes consigo mesmas.

Teria sido encontrado o Viagra feminino, mais um Santo Graal da indústria farmacêutica? Ainda não. Primeiro, porque a substância patenteada pela Boehringer ainda não foi aprovada pelas autoridades que controlam a produção e a venda de medicamentos. Ainda em fase de testes, a flibanserina pode revelar-se uma falsa promessa e nem chegar ao mercado. E essa talvez nem seja a razão mais importante para ter cautela em relação à novidade. Assim que o anúncio do remédio surgiu, levantaram-se duas ordens de objeções a ele. A primeira é que a doença que a flibanserina se propõe tratar é controversa. Muitos estudiosos da sexualidade feminina dizem que o desejo das mulheres envolve fatores demais para permitir definições categóricas, como Transtorno do Desejo Sexual Hipoativo. O que é sexualidade normal, perguntam esses críticos? Quantas vezes por semana a mulher tem de sentir desejo? Ou, ainda, como se podem separar situações de desgaste afetivo de situações de desinteresse sexual? Por trás dessa resistência, há uma opinião consistente: a indústria farmacêutica estaria tentando resolver por meios químicos um problema que tem natureza mais ampla. Seria uma situação semelhante à de milhares de crianças levadas que saem de consultórios psiquiátricos com uma receita do remédio ritalina para tratar outra sigla mágica criada pelos médicos, o TDAH, ou Transtorno do Déficit de Atenção com Hiperatividade. Ou à daqueles que recebem antidepressivos para tratar situações normais - e bastante humanas - de tristeza ou melancolia. Assim como muitos antidepressivos, a flibanserina opera alterando no cérebro os níveis de serotonina, um neurotransmissor que influi na sensação de bem-estar.

A outra ordem de objeção à nova droga diz respeito à eficácia do produto experimental. Apesar dos resultados porcentuais altissonantes, na casa dos 96% de melhora, os estudos com a flibanserina sugerem que o medicamento é capaz de produzir, na prática, menos de dois episódios adicionais de prazer por mês. O número parece pequeno, mesmo para mulheres com baixa libido. Saltar de uma média de 2,7 para 5,3 momentos satisfatórios de prazer por mês justifica tomar um medicamento todos os dias, pela vida toda? Ainda não há consenso sobre isso. "Para uma mulher que está sem desejo nenhum, praticamente com aversão ao parceiro, que não transava nenhuma vez por mês, passar a transar pelo menos uma vez fará uma grande diferença na vida dela", diz a ginecologista Carolina Carvalho, da Universidade Federal de São Paulo. "É exatamente para essas mulheres, que relatam atividade sexual praticamente zero, que esse medicamento poderá ser interessante. Para uma mulher que tenha falta de desejo moderado, provavelmente não valerá a pena."


As mulheres testadas com flibanserina relataram aumento médio de 96% no número de "eventos sexuais satisfatórios"


Ainda que a flibanserina esteja sendo comparada ao Viagra, as semelhanças entre os dois medicamentos são pequenas. Para começar, o objetivo do Viagra não é estimular o desejo. O homem que procura esse medicamento já sente vontade de transar, mas não consegue iniciar ou concluir a relação por falta de ereção. A pílula azul resolve esse problema aumentando o fluxo sanguíneo no pênis. Sua ação é mecânica e local. É por esse motivo que os testes realizados em 2004 com o Viagra para o tratamento da disfunção sexual feminina não mostraram resultados promissores. A libido da mulher parece ter menos relação com seus órgãos sexuais que com sua mente. Ao atuar no sistema nervoso, a flibanserina busca interferir na base neurológica do problema.

O que há de comum entre os dois medicamentos é a maneira como foram descobertos. Assim como o Viagra, inicialmente desenvolvido para tratar problemas cardíacos, mas que acabou se mostrando mais eficaz para estimular a ereção masculina, a flibanserina começou a ser estudada com outro propósito. No final da década de 90, ela foi desenvolvida pela Boehringer como antidepressivo, mas os estudos demonstraram que, em vez de melhorar os sintomas da depressão, a droga os piorava. Em compensação, as mulheres que participaram dos estudos começaram a relatar um aumento do desejo sexual. Imediatamente, mudou-se o foco das pesquisas.

O que há de mais diferente entre Viagra e flibanserina é o uso. A ação do novo remédio é demorada - aliás, como tudo o que diz respeito à excitação feminina. Serão necessárias de duas a seis semanas até que o remédio comece a fazer efeito. Depois, a mulher deverá continuar a tomá-lo diariamente, independentemente da ocorrência ou não de relação sexual, por tempo indefinido, apesar de efeitos colaterais como sonolência, tontura, ansiedade, boca seca, náusea e insônia - sem mencionar os efeitos financeiros de um medicamento que talvez precise ser tomado a vida inteira.

Apesar dos testes extensivos, os especialistas da Boehringer ainda não são capazes de descrever com precisão os efeitos da droga. "Depende da paciente: algumas poderão se excitar mais, outras poderão sentir mais vontade de transar ou ter mais prazer", diz o neuropsiquiatra Demétrio Ortega Rumi, gerente médico da área de sistema nervoso central da Boehringer. "Ela não só sentirá mais desejo, como a qualidade de cada relação sexual melhorará e, num segundo momento, poderá haver uma melhora também na quantidade de relações." Rumi diz que, ao ter relações mais prazerosas, a paciente poderá se sentir inclinada a aumentar a frequência. "A melhora pode ser quantitativa e qualitativa", afirma ele.


É para as mulheres que relatam atividade sexual praticamente zero que o remédio poderá ser mais interessante


A complexidade da libido feminina põe em questão esse otimismo. O novo medicamento se destinará apenas às mulheres com diagnóstico de TDSH, uma doença difícil de diagnosticar. Não existe um exame clínico para identificá-la. O diagnóstico é feito com a ajuda de um questionário de dez perguntas sobre diversos aspectos da vida sexual da paciente nos últimos seis meses (faça o teste na primeira página) e pela exclusão de outros problemas que possam causar falta de desejo. Entre eles estão menopausa, desequilíbrios hormonais, doenças e uso de medicação com esse efeito colateral. Como saber se a falta de desejo está ligada ao TDSH ou ao parceiro? "Quando a mulher tem fantasias sexuais por outros homens, ela não sofre de desejo hipoativo, que se caracteriza por falta de interesse generalizado pelo sexo, por um período de seis meses", diz a psiquiatra Carmita Abdo, do projeto Sexualidade, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Outro ponto importante: para ser diagnosticada como portadora de disfunção sexual, é fundamental que a mulher se sinta incomodada pela falta de desejo. Se ela não tem vontade de transar, mas isso não a incomoda e nem atrapalha sua vida, por que se tratar?

"A falta de libido engloba tanta coisa que fica difícil distinguir um problema psicológico de um orgânico", diz Carolina, da Unifesp. "Não dá para separar causas físicas, emocionais e conjugais. É tudo misturado." Além da menopausa, que provoca diminuição da produção de hormônios femininos e causa diminuição no desejo sexual, a libido das mulheres pode ser afetada por fatores tão diversos como religião e educação sexual na infância. Problemas familiares com o parceiro, depressão e uso de medicamentos também embotam o desejo feminino. "Outra coisa importante na sexualidade da mulher é a autoestima", diz Carolina. "Tenho pacientes que engordaram e perderam a libido por sentir-se feias e pouco atraentes. É importante para a mulher sentir-se sexy."

Parece evidente que um único remédio, qualquer que seja, é incapaz de resolver todos os problemas envolvidos na sexualidade feminina. Mas isso não significa que o remédio seja inútil. Nem que a patologia a que ele possa atender seja desimportante. O cientista John Torp, professor de ginecologia e obstetrícia da Universidade da Carolina do Norte e principal responsável pelos testes da flibanserina nos Estados Unidos, afirma que, apesar das dificuldades no diagnóstico de hipoatividade sexual, o problema existe - e constitui para as mulheres um transtorno tão grave quanto a disfunção erétil para os homens. "É uma doença ou não? Não sei", diz ele. "Ninguém vai morrer disso, mas nossa preocupação é melhorar a qualidade de vida das mulheres." Quanto ao efeito do medicamento, ele é igualmente prático: "Não sei se é uma coisa psicológica ou biológica, mas, assim que as mulheres ficam interessadas (em sexo), as coisas funcionam direitinho".


Se a qualidade da relação sexual melhorar, diz um médico, a paciente terá vontade de aumentar a frequência


A dona de casa paulistana Claudete Moreira, que diz sofrer com a falta de desejo sexual, é um exemplo de como problemas conjugais e familiares podem se misturar a questões biológicas e interferir na libido. Suas primeiras manifestações da menopausa se juntaram a crises de ciúme do marido (mais jovem) e a problemas familiares do casal. "Ele brigava muito com meus filhos e netos, e aquilo me magoava muito", diz Claudete. "Com o tempo, passei a perder totalmente a vontade de manter relações sexuais. Até achei que não gostava mais de meu marido." Por insistência dele, procurou ajuda médica e descobriu que, além das questões conjugais, a deficiência hormonal causada pela menopausa estava derrubando a libido. Com reposição hormonal e terapia sexual em grupo, Claudete diz que não recuperou 100% a libido, mas que já não passa meses sem transar.

Sim, as mulheres são complicadas, sobretudo quando se compara sua libido à masculina. E as razões para isso são as mais diversas, começando pela própria questão biológica. O hormônio responsável pelo desejo sexual é a testosterona, presente em maior quantidade no organismo masculino que no feminino. Quando a mulher atinge a menopausa, por volta dos 50 anos, a produção de testosterona cai ainda mais - cerca de 10% a cada ano. No homem, a taxa de redução anual é de apenas 1%. É natural, também, que a mulher seja mais cautelosa, pelo risco de gravidez. "Enquanto a sexualidade do homem é estimulada desde a infância, a mulher é educada para ser discreta. Isso tem mudado, mas a tradição é educar de maneira diferente a mulher e o homem para o sexo", diz Carmita.

Historicamente, o prazer da mulher sempre foi tratado com estranheza. Na Idade Média, as mulheres que "praticassem crimes sexuais contra os homens" eram acusadas de possessão demoníaca e acabavam na fogueira. Do Renascimento ao século XVIII, as coisas melhoraram um pouco. Ainda que a mulher que se masturbasse ou tivesse uma vida sexual ativa fosse considerada mentalmente doente, o prazer conjugal - para procriação, claro - era admitido. Essa concessão, segundo narra a jornalista inglesa Catherine Blackledge no livro A história da V - Abrindo a caixa de Pandora, se devia à noção de que o orgasmo feminino seria crucial à concepção. Nesse período, o prazer sexual feminino foi considerado aceitável e até moralmente louvável pelas mais importantes autoridades da época: a Igreja e a ciência.


Historicamente, o prazer da mulher sempre foi tratado com estranheza. Na Idade Média, era sinônimo de possessão demoníaca


Essa visão acabou em 1770, quando foi realizada a primeira inseminação artificial numa cadela. Concluiu-se, com base nessa experiência, que, se os animais não precisavam de orgasmo para conceber, o orgasmo feminino não era necessário para engravidar. Na passagem do século XIX para o XX, a medicina perdeu-se em relação ao prazer das mulheres. Enquanto alguns diziam que o orgasmo seria necessário para manter a saúde - tanto que o vibrador surgiu nessa época, como instrumento médico para auxiliar na massagem íntima nos consultórios -, outros afirmavam que as mulheres com sensações sexuais eram loucas e perigosas. Em 1869, o médico Richard von Krafft-Ebing ficou famoso por dizer, na coletânea de estudos sobre perversões sexuais Psychopathia sexualis, que "quando as mulheres são normais, física e mentalmente, e bem-educadas, têm pouquíssimo desejo sexual". A edição de 1899 do Manual Merck,até hoje um guia de referência para médicos, recomendava numa página a massagem vaginal como tratamento para histeria. Em outra, sugeria o ácido sulfúrico como remédio para a ninfomania.

"A sexualidade feminina sempre foi vista como misteriosa, seja por sua anatomia, seja pelo prazer, pela gravidez e pela capacidade de dar à luz", diz o psiquiatra Alexandre Saadeh, do Hospital das Clínicas de São Paulo. Ele diz que o interesse pelas manifestações sexuais femininas aumentou na década de 1950, com os estudos de Alfred Kinsey. O zoólogo americano demonstrou que o gatilho do prazer feminino estava no clitóris, não na vagina. E que as mulheres eram sexualmente mais ativas do que se pensava. Seus trabalhos mudaram o discurso da ciência com relação à sexualidade feminina, mas foi apenas a partir da revolução sexual dos anos 60, com a chegada da pílula anticoncepcional e com a dissociação entre sexo e reprodução, que o prazer e o desejo passaram a ter mais importância para as mulheres. Surgiram os primeiros trabalhos sobre as disfunções sexuais femininas e começou a busca de soluções para esses problemas: de comidas e bebidas afrodisíacas a hormônios masculinos. Nada que apresentasse resultados animadores.

A flibanserina - que poderá chegar ao mercado com o nome de Girosa - é resultado direto do Viagra, lançado em 1998. Ele produziu uma corrida em busca de uma droga com efeitos similares nas mulheres. Diversas substâncias foram testadas de lá para cá. A única que se mostrou promissora até o momento foi a da Boehringer. Os especialistas dizem que, se o medicamento for aprovado pelas autoridades americanas e se mostrar eficaz, poderá ser um avanço importante. Mas não será a panaceia dos problemas sexuais femininos. Tampouco será o Viagra das mulheres. "Não podemos passar a ideia de que teremos uma pílula mágica", diz o ginecologista Aarão Mendes Pinto Neto, da Universidade Estadual de Campinas. "Esse remédio poderá ser uma arma a mais no arsenal terapêutico." Mas, se resolver apenas parte do problema de uma parte dos milhões de mulheres que sofrem de baixa libido, já entrará para a história como uma revolução.


Autor: Fernanda Colavitti
Fonte: Época

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